Durante muito tempo fui indiferente ao cinema
de Lucrecia Martel. Lembro que minha primeira experiência com a diretora
argentina ocorreu há uns dois anos e que o filme daquela oportunidade foi A mulher sem
cabeça, o qual - confesso - nunca digeri muito bem. Mas como a
distância temporal é consideravelmente grande, principalmente em se
tratando de algo tão denso, só poderia falar com propriedade a seu
respeito caso revisasse-o. Por outro lado, afirmo que O Pântano (La
Ciénaga), seu trabalho mais famoso, é uma obra-prima. Aqui, a câmera é
elevada à condição de personagem e tem como único e fiel ofício realizar
uma pontual exposição de elementos do cotidiano de duas famílias -
unidas pelo laço de parentesco entre suas mães. Não há em La Ciénaga um
ponto de partida e um fim, pois aquilo com que mantemos cerca de 100
minutos de contato não se resume a um recorte de determinado momento das
vidas de suas personagens. O que está bordado em tela não é uma
história, e sim a pura reprodução daquilo que acontece dentro de um lar.
Martel, sobriamente, nos empurra para dentro daquelas vidas e coloca
sobre nossos ombros de espectador-testemunha o peso de toda a morbidez e
falta de norte do material humano sobre o qual se debruça. As casas
onde ocorrem a maioria das ações estão sempre cheias e há sempre muito
barulho, discussões, calor etc. As atuações, de todos os atores
(inclusive as das crianças), fluem de uma maneira tão perfeita que às
vezes nos dão a impressão de que estamos na residência de um amigo no
momento em que uma desconcertante discussão com a mãe ou com a mulher
deste é iniciada e nós apenas observamos aquilo com respeitável rigidez.
Martel não nos conta nada, apenas, de forma absurdamente eficiente,
orbita ao redor daqueles corpos, ou melhor, da vida como ela é.
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